S. Justino de Roma: 2ª Apologia
Sobre a obra
Por Roque Frangiotti
Fonte: Coleção Patrística – Padres Apostólicos I – Ed. Paulus
Não há nenhum indício convincente de que se trata, de fato, de uma segunda Apologia. Ao contrário, tudo indica que há uma única Apologia em duas partes. Repare-se que a 11 Ap. começa diretamente sem cabeçalho, sem destinatário, aludindo ao fato relativamente recente que deve ter impressionado seu autor. Não é, portanto, escrito independente da I Ap. Prescindindo da menção de Eusébio de Cesaréia sobre as duas Apologias, os críticos consideram com unanimidade que a chamada “11 Apologia” é mero apêndice ou complemento da primeira. Por seu conteúdo, mais se evidencia que não representa senão ampliação de temas tratados já na I Ap.
Quanto à data de composição, detém-se na menção de Lólio Úrbico, prefeito de Roma de 144 a 160. Mais exatamente os peritos a datam de 155 a 160.
A ocasião que motivou a 11 Ap. seria praticamente a mesma da I Ap.: cristãos iam à morte, procuravam o martírio. Daí o dito comum: “Matai-vos uns aos outros, e ide de uma vez para o vosso Deus, e não nos incomodeis mais”. O que intriga, particularmente, Justino é o que está na 11 Ap. 2,16, isto é, um julgamento tão contra a razão: “Por que motivo condenaste à morte um homem que ninguém provou ser adúltero, ou fornicador, ou assas- sino, ou ladrão, ou salteador, ou, por fim, ré de algum crime, mas que apenas confessou levar o nome de cristão? Úrbico, não estás julgando de modo conveniente ao impe- rador Pio, nem ao filho de César, amigo do saber, nem ao sacro Senado”.
À objeção: “Se confessam a Deus porque não os socorre e os livra da morte?”, Justino não é feliz na resposta. Deus entregou o mundo à administração dos anjos. Estes se uniram às mulheres e geraram filhos que são os demônios, causa de todos os males da humanidade” (11 Ap. 4).
Repete idéia sobre a) o nome de Deus; b) a encarnação do Filho de Deus cuja finalidade é a salvaçãop dos crentes e a destruição dos demônios; c) delação da conflagração universal por causa dos cristãos (6,1). Se os demônios procuram prejudicar os homens bons estóicos, mais ainda aos cristãos que possuem o Verbo por inteiro (7,1-9).
No cap. 8, menciona o filósofo Crescente que será seu acusador perante a autoridade romana. No capo 9, recolhe a objeção vinda dos filósofos: “E os que se consideram filósofos não aleguem que são apenas ruídos e espanta- lhos o que afirmamos sobre o castigo que os iníquos sofrerão no fogo eterno, e que nós exigimos que os ho- mens vivam retamente por medo e não porque a virtude é bela e gratificante” (9,1). Mas a grande objeção da 11 Ap., que é também a da I, está no capo 10: reafirmar a superioridade da religião cristã sobre toda filosofia e sobre to- do ensinamento humano, pois só os cristãos possuem o Lógos inteiro, que é Cristo.
No cap. 13, Justino esclarece que os filósofos expressaram, graças à participação do Lógos seminal, o que era conforme a esse mesmo Verbo parcial que possuíam, porém o fato de se contradizerem em pontos importantes é prova de que não possuíam, como os cristãos, a ciência infalível e o conhecimento irrefutável. Conclusão: tudo de bom pertence aos cristãos (13,4).
Embora o apóstolo João fale do “Verbo que ilumina todo homem que vem ao mundo, foi no estoicismo que Justino aprendeu que o Lógos é a razão imanente do mundo, a lei que o rege e a força que o anima. Neste aspecto, o Lógos é chamado Lógos spermatik6s ou razão seminal. Cada homem tem seu lógos particular, participa do lógos total, animado, dirigido por ele. Assim, em Cristo-Logos, os cristãos têm a plenitude do conhecimento e da revelação (10,1); “A nossa doutrina supera todo ensinamento humano porque temos o Lógos em toda a sua inteireza em Cristo, que foi manifestado por nós, corpo, razão e alma. O Lógos é criador de sua própria humanida- de. Cristo, Filho de Deus é a Lei eterna e a nossa aliança para o mundo inteiro. O tema central de Justino é o plano criador e salvífico de Deus (a economia), manifestado e realizado por Cristo-Lógos. No interior deste plano divino, encontra seu lugar a sabedoria dos antigos filósofos. Sua premissa básica é que a razão humana (lógos) é uma participação do Lógos divino: em cada homem há “uma semente”, sperma do Lógos, resultante da ação do “Verbo que dá a semente” (7,3; 13,3).
A Obra
Fonte: Coleção Patrística – Padres Apostólicos I – Ed. Paulus
Tradução: Ivo Storniolo, Euclides M. Balancin
1. 1Romanos, o que aconteceu ultimamente em vossa cidade sob Urbico e o que os governadores estão fazendo, sem razão, em todo o império, forçou-me a compor o presente discurso em vosso favor. Com efeito, sois da nossa mesma natureza e irmãos nossos, por mais que, por causa da vaidade de vossas supostas dignidades, não o reconheçais, nem o desejeis. 2O fato é que em todas as partes há gente disposta a nos levar à morte. Exceto os que estão persuadidos de que os iníquos e intemperantes serão castigados com o fogo eterno e que os virtuosos e que viveram de modo semelhante a Cristo, viverão impassíveis com Deus, isto é, exceto os que são cristãos, todo aquele que é repreendido pelo pai, vizinho, filho, amigo, marido ou mulher por causa de uma falta, se volta contra nós, por sua obstinação no mal, por seu amor ao prazer e por sua impotência para seguir o que é bom; com estes, os malvados demônios, por causa do ódio que nos professam e porque têm a seu serviço tais juízes, como se, de fato, os governantes fossem endemoninhados. 3E para que vos fique clara a causa de tudo o que aconteceu sob Urbico, contarei o caso em pormenores.
Um drama doméstico
2. 1Certa mulher vivia com o seu marido, homem dissoluto, e antes de se tornar cristã, se entregara à vida licenciosa. 2Todavia, logo que conheceu os ensinamentos de Cristo, não só se tornou casta, como procurava também persuadir seu marido à castidade, referindo-lhe os mesmos ensinamentos e anunciando-lhe o castigo do fogo eterno, preparado para os que não vivem castamente e conforme a reta razão. 3Ele, porém, obstinado na dissolução, com a sua conduta desanimou a sua mulher. 4Com efeito, esta considerava uma coisa ímpia continuar partilhando o leito com um homem que só procurava meios de prazer a todo custo, contra a lei da natureza e contra o que é justo, e decidiu divorciar-se. 5Seus parentes, todavia, a dissuadiam e a aconselhavam que tivesse ainda um pouco de paciência, com a esperança de que, algum dia, pudesse mudar o homem. Então, ela violentou-se a si mesma e esperou. 6O marido teve que fazer uma viagem para Alexandria e logo a mulher ficou sabendo que ele cometia lá maiores excessos ainda. Depois disso, para não se tornar cúmplice de tais iniqüidades e impiedades, permanecendo no matrimônio e partilhando o leito e a mesa com tal homem, ela apresentou o que entre vós se chama “libelo de repúdio”, e separou-se. 7Então, aquele excelente marido, que deveria ter-se alegrado pelo fato de sua mulher, antes entregue à vida fácil com escravos e diaristas, entre bebedeiras e todo tipo de maldade, ter agora deixado tudo isso e só desejar que ele também, dado às mesmas farras, pusesse fim a tudo isso, ficou, pelo contrário, despeitado por ela ter-se divorciado contra a sua vontade e a acusou diante dos tribunais, dizendo que ela era cristã. 8A mulher, contudo, apresentou a ti, imperador, um memorial, solicitando autorização para dispor antes de sua propriedade, e responder diante dos tribunais à acusação que lhe era feita, depois que estivesse resolvida a questão dos seus bens. Tu concedeste o que ela solicitou. 9O que antes fora marido, não podendo, na ocasião, fazer nada contra a mulher, voltou-se contra certo Ptolomeu, que Urbico chamara do seu tribunal, por ter sido mestre dela nos ensinamentos de Cristo. Eis o ardil que ele usou. 10O centurião que prendera Ptolomeu era seu amigo, e ele o persuadiu para que o detivesse e lhe perguntasse apenas se era cristão. 11Ptolomeu, que era por caráter amante da verdade, incapaz de enganar ou dizer uma coisa por outra, confessou que era de fato cristão. E isso bastou para que o centurião o acorrentasse e o atormentasse por muito tempo no cárcere. 12Finalmente, quando Ptolomeu foi levado diante do tribunal de Urbico, a única pergunta que lhe fizeram foi igualmente se era cristão. 13De novo, consciente dos bens que devia à doutrina de Cristo, confessou o que é ensinamento da divina virtude. 14Com efeito, quem nega alguma coisa, seja o que for, ou a nega porque a condena ou recusa confessá-la por saber que é indigno ou alheio a ela; nada disso convém ao verdadeiro cristão. 15Urbico ordenou que ele fosse condenado ao suplício; mas certo Lúcio, que também era cristão, vendo um julgamento realizado tão contra toda a razão, disse a Urbico: 16“Por que motivo condenaste à morte um homem, que ninguém provou ser adúltero, ou fornicador, ou assassino, ou ladrão, ou salteador, ou, por fim, réu de algum crime, mas que apenas confessou levar o nome de cristão? Urbico, não estás julgando de modo conveniente ao imperador Pio, nem ao filho de César, amigo do saber, nem ao sacro Senado.
17Urbico não respondeu nada. Dirigiu-se a Lúcio, e lhe disse: “Parece-me que também tu és cristão!”
18Lúcio respondeu: “Com muita honra.” E sem mais, o prefeito deu ordem para que ele também fosse conduzido ao suplício. 19Lúcio declarou-lhe que até agradecia por isso, pois sabia que ia se livrar de tão perversos tiranos e que iria ao Pai e rei dos céus. 20Por fim, um terceiro, que sobreveio, também foi condenado à morte.
O suicídio não é lícito
3(4). 1Contudo, para que não se diga: “Matai-vos uns aos outros, e ide de uma vez para o vosso Deus, e não nos incomodeis mais”, quero dizer por que não fazemos isso e também por que, ao ser interrogados, confessamos corajosamente a nossa fé. 2Nós aprendemos que Deus não fez o mundo por acaso, mas por causa do gênero humano, e já dissemos que ele se compraz com aqueles que imitam as suas qualidades e, em troca, se desagrada com aqueles que, por palavras ou obras, se entregam ao mal. 3Portanto, se todos nos matássemos a nós mesmos, seríamos culpados de que nascesse alguém que seria instruído nos ensinamentos divinos e, no que dependeria de nós, seríamos responsáveis pelo desaparecimento do gênero humano e, fazendo isso, também nós agiríamos de modo contrário ao desígnio de Deus. 4Quanto a não negarmos a ser interrogados, isso se deve ao fato de nós não termos consciência de ter cometido nenhum mal e, ao contrário, consideramos como impiedade não sermos em tudo verazes. Sabemos que isso é agradável a Deus, e nos apressamos em vos livrar agora da injusta preocupação contra nós.
A obra dos demônios
4(5). 1Caso ocorresse a alguém a idéia de que, se confessamos a Deus como protetor, não estaríamos, como dizemos, sob o poder dos iníquos, sofrendo seus castigos, resolverei também essa dificuldade. 2Tendo Deus feito o mundo inteiro, submetido as coisas terrestres aos homens e ordenado os elementos do céu, impondo-lhes também uma lei divina para o crescimento dos frutos e variação das estações -os quais também claramente ele fez para os homens -, entregou-o, assim como as coisas sob o céu, aos cuidados dos anjos que para isso designou. 3Mas os anjos, violando essa ordem, deixaram-se vencer por seu amor pelas mulheres e geraram filhos, que são os chamados demônios[1]. 4Além disso, mais adiante, escravizaram o gênero humano, algumas vezes por meio de sinais mágicos; outras por terrores e castigos que infligiam; outras, ensinando-lhes a sacrificar e oferecer para eles incensos e libações de que necessitam, depois que se submeteram às paixões de seus desejos. Finalmente, foram eles que semearam entre os homens assassínios, guerras, adultérios, vícios e maldades de todo tipo. 5Daí, os poetas e narradores de mitos, não tendo idéia de que os anjos e os demônios, que deles nasceram, cometeram com homens e mulheres e fizeram em cidades e nações tudo o que lhes escreveram, depois o atribuiram ao próprio Deus e aos filhos carnalmente nascidos dele e aos chamados seus irmãos, Posêidon e Plutão, e igualmente aos filhos destes. 6Com efeito, os poetas chamaram os seus deuses com o nome que cada demônio tinha posto em si mesmo e em seus filhos.
Deus não tem nome
5(6). 1O Pai do universo, sendo ingênito, não tem nome imposto, pois todo aquele que tem nome supõe outro mais antigo que o tenha imposto. 2Pai, Deus, Criador, Senhor, Soberano não são propriamente nomes, mas denominações tiradas de seus benefícios e de suas obras. 3Quanto a seu Filho, o único que propriamente se diz Filho, o Verbo, que está com ele antes das criaturas e é gerado, quando no princípio criou e ordenou por seu meio todas as coisas, chama-se Cristo por sua unção e porque Deus ordenou por seu meio todas as coisas, nome que também compreende um sentido incognoscível, da mesma maneira que a denominação “deus” não é nome, mas uma concepção ingênita da natureza humana de uma realidade inexplicável. 4“Jesus”, em troca, é nome de homem que tem a sua própria significação de “salvador”. Sim, com efeito, como já dissemos, o Verbo se fez homem por desígnio de Deus Pai e nasceu para a salvação dos que crêem e destruição dos demônios. Podeis comprová-lo por aquilo que, agora mesmo, está acontecendo diante de vossos olhos. De fato, em todo o mundo e em vossa própria cidade imperial, muitos dos nossos, isto é, cristãos, conjurando pelo nome de Jesus Cristo, que foi crucificado sob Pôncio Pilatos, curaram e ainda agora continuam curando muitos ende- moninhados que não puderam sê-Io por todos os outros exorcistas, encantadores e feiticeiros. E assim destroem e expulsam os demônios que possuem os homens.
Os cristãos conservam o mundo
6(7).1Assim, Deus também adia pôr um fim à confusão e destruição do universo, por causa da semente dos cristãos, recém-espalhada pelo mundo, que ele sabe ser a causa da conservação da natureza. 2De fato, se assim não fosse, vós não teríeis poder para fazer nada daquilo que faz eis conosco, nem seríeis manejados pelos demônios, como instrumentos de sua ação; mas descendo o fogo de julgamento, já teria separado tudo sem exceção, do mesmo modo como não deixou vivo ninguém antes do dilúvio, a não ser aquele que nós chamamos Noé, juntamente com os seus, e que vós chamais Deucalião, do qual nasceu de novo numerosa multidão de homens, uns maus, outros bons. 3Com efeito, nós dizemos que acontecerá a conflagração universal, mas não, como dizem os estóicos por causa da transformação de umas coisas em outras, pois Iisso nos parece muito torpe. Também não dizemos que os homens agem ou sofrem por necessidade do destino, mas que cada um age bem ou peca por sua livre determinação[2]. Acrescentamos ainda que, por obra dos perversos demônios, homens bons, como Sócrates e outros semelhantes, foram perseguidos e aprisionados, e, ao contrário, Sardanapalo, Epicuro e outros de sua laia viveram, ao que parece, na abundância, glória e felicidade. 4Não entendendo isso, os estóicos disseram que tudo acontece por necessidade do destino. 5Mas não é assim; no princípio, Deus criou livres tanto os anjos como o gênero humano e, por isso, receberam com justiça o castigo de seus pecados no fogo eterno. 6 A natureza de tudo o que tem princípio é esta: ser capaz de vício e de virtude, pois ninguém seria digno de louvor se não pudesse também voltar-se para um desses extremos. 7Demonstram isso aqueles homens que, em todas as partes, legislaram e filosofaram conforme a reta razão, ao mandarem que se façam algumas coisas e se evitem outras. 8Os próprios filósofos estóicos, em sua doutrina sobre costumes, têm em alta estima esses mesmos princípios. Isso prova que eles não estão no caminho certo na sua metafisica sobre os princípios e o incorpóreo. 9De fato, ao dizer que tudo o que os homens fazem acontece por necessidade do destino ou que Deus não é outra coisa senão isso que constantemente se muda, se transforma e se dissolve nos mesmos elementos, torna-se patente que têm idéia apenas do corruptível e que Deus, em suas partes e como um todo, se produz em meio a toda maldade ou, por fim, que a virtude e a maldade nada são. Isso choca-se contra toda idéia prudente, contra toda razão e inteligência.
A semente do Verbo
7(8). 1Sabemos que alguns que professaram a doutrina estóica foram odiados e mortos. Pelo menos na ética eles se mostram moderados, assim como os poetas em determinados pontos, por causa da semente do Verbo, que se encontra ingênita em todo o gênero humano. Assim é Heráclito, como antes dissemos, e entre os do nosso tempo, Musônio e outros que conhecemos. 2Com efeito, como já anotamos, os demônios sempre se empenharam em tornar odiosos aqueles que, de algum modo, quiseram viver conforme o Verbo e fugir da maldade. 3Portanto, não é de se admirar se eles, desmascarados, procuram também tornar odiosos, e com mais empenho ainda, àqueles que vivem não apenas de acordo com uma parte do Verbo seminal, mas conforme o conhecimento e contemplação do Verbo total, que é Cristo. Eles receberam merecido tormento e castigo, aprisionados no fogo eterno. 4Se eles agora são vencidos pelos homens em nome de Jesus Cristo, isso é aviso do futuro castigo no fogo eterno que os espera, juntamente com aqueles que os servem. 5Todos os profetas anunciaram isso de antemão e isso também nos ensinou o nosso mestre Jesus.
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[1] Justino se mostra aqui devedor de seu meio e de seu tempo. Mostra-se ingênuo, embora filósofo, sobre a origem e ação dos demônios. Não se deve esquecer que esta é a ?época de ouro da demonologia?
[2] Os estóicos criam num destino-providência, num fatum. Para uma compreensão melhor desta questão, cf. Leitura acessível em R., Frangiotti, A Doutrina Tradicional da Providência: implicações sociopolítica, Ed. Paulinas, 1986.
Pressentimento do martírio
8(9). 1Eu mesmo espero ser vítima das ciladas de algum desses demônios aludidos e ser cravado no cepo, ou pelo menos, das ciladas de Crescente, esse amigo da desordem e da ostentação. 2Não merece o nome de filósofo um homem que, sem saber uma palavra sobre nós, nos calunia publicamente, como se nós, cristãos, fôssemos ateus e ímpios, espalhando essas calúnias para congratular-se e agradar a multidão transviada. 3De fato, se ele nos persegue sem ter encontrado a doutrina de Cristo, é homem absolutamente mau e que se coloca muito abaixo do próprio vulgo dos ignorantes, os quais com freqüência se preservam de falar do que não entendem e, principalmente, de levantar falsos testemunhos; se leu, não entendeu a sua sublimidade; se a entendeu e age assim para ninguém suspeitar que ele é cristão, então é ainda mais miserável e mau, pois se deixa vencer pela opinião vulgar e irracional e pelo medo. 4Quero que saibais que, ao propor-lhe e fazer-lhe certas perguntas sobre o caso, lhe fiz ver e o convenci de que não sabe absolutamente nada. 5Para provar que digo a verdade, se não vos foram comunica das as notas de nossas discussões, estou disposto a repetir minhas perguntas e respostas e isso também seria uma façanha digna de imperadores. 6Mas se as minhas perguntas e respostas já tivessem chegado ao vosso conhecimento, por elas ficaria claro para vós que ele não entende nada sobre nossa religião. Se ele sabe e, a exemplo de Sócrates, como eu disse antes, não se atreve a falar por medo daqueles que o escutam, não é homem que ama o saber, mas a opinião, como quem não aprecia o dito socrático tão digno de ser apreciado: “Não se deve estimar nenhum homem, acima da verdade.” 7Contudo, é impossível que um cínico, pondo o fim supremo na indiferença, conheça bem alguma coisa fora dessa indiferença.
Existe uma justiça eterna
9. 1E os que se consideram filósofos não aleguem que são apenas ruídos e espantalhos o que afirmamos sobre o castigo que os iníquos sofrerão no fogo eterno, e que nós exigimos que os homens vivam retamente por medo e não porque a virtude é bela e gratificante. A eles responderemos brevemente: se a coisa não é como dizemos, então não existe Deus ou, se existe, não se importa em nada com os homens; a virtude e o vício nada seriam, como já dissemos, nem os legisladores castigariam com justiça os que transgridem as boas ordenações. 2Todavia, como os legisladores não são injustos e o Pai deles ensina, através do Verbo, a fazer o que ele mesmo faz, não são injustos os que a eles aderem. 3E se nos objetam que existe diversidade de leis entre os homens e que aquilo que uns consideram bom, outros o consideram mau, e o que é belo para estes é vergonhoso para aqueles, respondemos da maneira que segue. 4Em primeiro lugar, sabemos que os anjos maus estabelecem leis semelhantes à sua própria maldade, nas quais se comprazem os homens que estão com eles; por outro lado, ao chegar depois a reta razão, ela demonstra que nem todas as opiniões, nem todas as leis são boas, mas umas são boas e outras más. Assim ou algo semelhante responderemos a eles. E, se houver necessidade, o diremos mais em pormenores. 5Por enquanto, volto ao que me propus.
Possuímos o Verbo inteiro
10. 1Portanto, a nossa religião mostra-se mais sublime do que todo o ensinamento humano, pela simples razão de que possuímos o Verbo inteiro[a], que é Cristo, manifestado por nós, tornando-se corpo, razão e alma.
2Com efeito, tudo o que os filósofos e legisladores disseram e encontraram de bom, foi elaborado por eles pela investigação e intuição, conforme a parte do Verbo que lhes coube. 3Todavia, como eles não conheceram o Verbo inteiro, que é Cristo, eles freqüentemente se contradisseram uns aos outros. 4Aqueles que antes de Cristo tentaram investigar e demonstrar as coisas pela razão, conforme as forças humanas, foram levados aos tribunais como ímpios e amigos de novidades. 5Sócrates, que mais se empenhou nisso, foi acusado dos mesmos crimes que nós, pois diziam que ele introduzia novos demônios e que não reconhecia aqueles que a cidade considerava como deuses. 6O fato é que, expulsando da república Homero e outros poetas, ele ensinou os homens a rejeitar os maus demônios, que cometeram as abominações de que falam os poetas, e ao mesmo tempo os exortava ao conhecimento de Deus, para eles desconhecido, por meio de investigação racional, dizendo: “Não é fácil encontrar o Pai e artífice do universo, nem, quando o tivermos encontrado, é seguro dizê-lo a todos.” 7Foi justamente o que o nosso Cristo fez por sua própria virtude. 8Com efeito, ninguém acreditou em Sócrates, até que ele deu a sua vida por essa doutrina; em Cristo, porém, que em parte foi conhecido por Sócrates, – pois ele era e é o Verbo que está em tudo, e foi quem predisse o futuro através dos profetas e, feito de nossa natureza, por si mesmo nos ensinou essas coisas – em Cristo acreditaram não só filósofos e homens cultos, mas também artesãos e pessoas totalmente ignorantes, que souberam desprezar a opinião, o medo e a morte; porque ele é a virtude do Pai inefável e não um vaso de humana razão.
O mito de Héracles
11. 1Contudo, os homens iníquos e os demônios não nos tirariam a vida, nem teriam poder sobre nós, se todo homem que nasce não tivesse também que morrer. Por isso, nós vos agradecemos porque pagais uma dívida que temos. 2Todavia, cremos que é bom e oportuno mencionar aqui o conhecido relato de Xenofonte para que Crescente e os que são tão insensatos como ele o recordem. 3Xenofonte conta que, ao chegar a uma encruzilhada, vieram ao encontro de Héracles a virtude e a maldade, na forma de mulheres. 4A maldade estava vestida com roupas finas, tinha rosto atraente e adornado com enfeites, e disse a Héracles que, se ele a seguisse, ela o faria viver sempre no prazer e enfeitado com o mais belo ornamento, semelhante ao que ela usava. 5Ao contrário, a virtude, com rosto e veste severos, lhe disse: “Se seguires a mim, não te enfeitarei com beleza ou adorno passageiro e corruptível, mas com enfeites eternos e belos.” 6Nós estamos persuadidos de que alcançam a felicidade todos aqueles que fazem dos bens aparentes e seguem o que parece duro e contra a razão. 7Porque a maldade veste as suas ações com as qualidades da virtude e do que é de fato bem, reme dando o incorruptível, pois ela de si não tem nada de incorruptível e nem é capaz de produzi-lo, e torna escravos seus os homens que se arrastam pelo chão, atribuindo à virtude os males próprios da maldade. 8Contudo, os que compreendem os bens verdadeiros, próprios da virtude, também se tornam incorruptíveis pela virtude. Que sejam assim os cristãos, os atletas e os heróis que fizeram aquelas façanhas atribuídas pelos poetas aos supostos deuses, qual- quer pessoa inteligente o pode deduzir, se souber tirar conseqüência do fato de que nós desprezamos a morte, da qual todos fogem.
O platônico se faz cristão
12.1Eu mesmo, quando seguia a doutrina de Platão, ouvia as calúnias contra os cristãos. Contudo, ao ver como caminhavam intrepidamente para a morte e para tudo o que é considerado espantoso, comecei a refletir que era impossível que tais homens vivessem na maldade e no amor aos prazeres. 2Com efeito, que homem amante do prazer, intemperante e que considere coisa boa devorar carnes humanas, poderia abraçar alegremente a morte, que vai privá-lo de seus bens, e que não procuraria antes, de todos os modos, prolongar indefinidamente a sua vida presente e esconder-se dos governantes, e menos ainda sonharia em delatar a si mesmo para ser morto? 3Por obra de homens perversos, os malvados demônios também já conseguiram isso. 4De fato, buscando condenar à morte alguns cristãos, fundados nas calúnias contra nós, arrastaram também escravos, meninos e mulheres e, por meio de incríveis tormentos, os forçaram a repetir contra nós o que o povo inventa, os mesmos crimes que eles cometem publicamente. Todavia, nada disso nos diz respeito e nada nos preocupa, pois temos o Deus eterno e inefável como testemunha de nossos pensamentos e ações. 5Com efeito, por qual motivo não haveríamos de proclamar publicamente que tudo isso é bom e demonstrar que se trata de uma divina filosofia, se bastasse dizer que ao matar um homem nós nos iniciamos nos mistérios de Saturno e que, ao fartar-nos de sangue, fazemos o mesmo que esse ídolo que tanto apreciais, ao qual se asperge não só com sangue de animais irracionais, mas também com sangue humano? E para semelhante rito de aspergir com o sangue dos executados, destinais o homem mais ilustre e mais nobre dentre vós. Por fim, quando dizem que abusamos dos varões e nos unimos sem temor com as mulheres, por que não dizer que, fazendo isso, estamos imitando a Zeus e aos outros deuses, alegando em nossa defesa os escritos de Epicuro e dos poetas? 6A verdade é que nos fazem guerra de mil modos, exatamente porque ensinamos a fugir de semelhantes doutrinas e daqueles que praticam tais coisas ou imitam tais exemplos, como mesmo nestes discursos que vos dirigimos, nos esforçamos por fazer. Contudo, a vossa guerra em nada vos importa, pois sabemos que o Deus que tudo vê é justo. 7Oxalá, agora mesmo subisse alguém à tribuna elevada e, com voz de ator, dali vos gritasse: “Envergonhai-vos, envergonhai-vos de imputar a pessoas inocentes a mesma coisa que praticais publicamente e atribuir aquilo que é próprio de vós e de vossos deuses àqueles que absolutamente nada têm a ver com isso. 8Convertei-vos, arrependei-vos!”
Sou cristão
13.1Eu também, ao perceber que os malvados demônios tinham lançado um véu sobre os divinos ensinamentos de Cristo, a fim de afastar deles os outros homens, desprezei da mesma forma aqueles que propagavam tais calúnias como o véu dos demônios e a opinião do vulgo. 2Confesso que todas as minhas orações e esforços tem por finalidade mostrar-me cristão, não porque as doutrinas de Platão sejam alheias a Cristo, mas porque elas não são totalmente semelhantes, como também as dos outros filósofos, os estóicos, por exemplo, poetas e historiadores. 3De fato, cada um falou bem, vendo o que tinha afinidade com ele, pela parte que lhe coube do Verbo seminal divino. Todavia, é evidente que aqueles que em pontos muito funda- mentais se contradisseram uns aos outros, não alcança- ram uma ciência infalível, nem um conhecimento irrefutável. 4Portanto, tudo o que de bom foi dito por eles, pertence a nós, cristãos, porque nós adoramos e amamos, depois de Deus, o Verbo, que procede do mesmo Deus ingênito e inefável. Ele, por amor a nós, se tornou homem para partilhar de nossos sofrimentos e curá-los. 5Todos os escritores só puderam obscuramente ver a realidade, graças à semente do Verbo neles ingênita. 6Com efeito, uma coisa é o germe e a imitação de algo, que é feita conforme a capacidade; e outra, aquele mesmo do qual se participa e imita, conforme a graça que também dele procede.
Que todos conheçam a verdade
14.1Portanto, nós vos suplicamos que, subscrevendo como vos pareça, deis publicidade a este livro, a fim de que também os outros conheçam a nossa religião e se vejam livres da vã opinião e da ignorância em relação ao bem. Por sua própria culpa, eles se tornam responsáveis pelo castigo, 2pois na natureza humana existe a faculdade de conhecer o bem e o mal, e eles, que nos condenam sem saber se praticamos as coisas vergonhosas de que nos acusam, comprazem-se com deuses que as fizeram e ainda exigem dos homens coisas semelhantes. De modo que, pelo fato de nos condenar à morte, ao cárcere e a outra pena semelhante, como se tivéssemos feito tais coisas, eles dão a sentença contra si próprios, sem que sejam necessários outros juízes.
15.1[Eu desprezei o ensinamento ímpio e enganoso da minha nação.]
2Se consentis em publicar este livro, nós gostaríamos de levá-Io ao conhecimento de todos, a fim de que, se possível, se convertam, porque foi só para esse fim que escrevi estes discursos. 3Com efeito, segundo julgamento prudente, as nossas doutrinas não são vergonhosas, mas superiores a toda filosofia humana. Se não são tais, ao menos não se parecem com as de Sotades, Filênida, Arquéstrato, Epicuro e outros, nem são semelhantes às de poetas que, oralmente ou por escrito, vós permitis que sejam conhecidas por todo mundo.
4Feito o que dependia de nós, aqui pomos ponto final. Acrescentamos nossa súplicas a Deus, para que a todos os homens de todo o mundo seja concedido conhecer a verdade. 5Oxalá também vós, em vosso interesse, julgueis com justiça, de acordo com vossa piedade e filosofia.
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[a] Deve-se distinguir entre o “Verbo inteiro”, ingênito, inefável, o próprio Cristo, e o “Verbo seminal” que habita nos homnes, especialmente nos sábios